terça-feira, 6 de dezembro de 2016

E agora, Itália?

O “não” italiano de Domingo colocou o país mais próximo de um referendo à permanência no euro.

1. O sistema constitucional italiano, tal como o português, está, ironicamente, muito influenciado pela ditadura passada. Em Itália, o sistema eleitoral dificulta a criação de governos maioritários e o facto de haver um Senado e uma câmara baixa dificulta a aprovação de legislação. Em Portugal, existe o primeiro problema, que se foi atenuando ao longo do tempo.

A ironia maior desta situação é uma ditadura ter uma influência tão longa e perversa sobre o regime que a substitui. O receio da concentração de poderes leva a criar um sistema de governo instável e lento a tomar decisões o que dá um mau nome à democracia. A má reputação da democracia, por seu lado, poderia dar popularidade a uma tentação autoritária que, felizmente, não se tem materializado. Há aqui uma enorme perversão: o medo da ditadura cria condições para o seu retorno.

A reforma referendada no domingo passado em Itália tinha o objectivo de retirar quase todos os poderes ao Senado, justamente com o propósito de agilizar a tomada de decisões. O argumento contra o medo da ditadura fascista do passado fez-se ouvir, bem como críticas à qualidade da reforma apresentada, nomeadamente por conter uma norma segundo a qual um partido que ganhe as eleições com 40% teria um bónus de deputados por forma a ficar com 56% dos deputados no parlamento. Qualquer que seja a importância relativa destas duas críticas, a reforma foi claramente chumbada e o primeiro ministro demitiu-se, como tinha prometido, embora houvesse professores de ciência política que não acreditassem que cumprisse esta promessa.

O que se segue, no plano político, tanto poderá ser um novo governo, liderado pelo próprio Renzi ou outro, até às eleições do início de 2018, ou eleições antecipadas. Seja qual for o momento que se realize um novo acto eleitoral, o partido de Beppe Grillo está bem colocado nas sondagens e já prometeu um novo referendo, desta vez à permanência do euro. O euro pode não ser a causa dos problemas italianos, mas desde a sua entrada nesta nova moeda só houve um país com um desempenho pior do que a Itália, a Grécia, pelo que é impossível sobrevalorizar o impacto desestabilizador dum tal referendo.

No plano económico, a salvação do sistema bancário italiano sofre um duro golpe, ficando muito mais difícil de concretizar num cenário de múltiplas incertezas.

2. Hoje em dia, a história é subvalorizada, sendo pouco ensinada na sua componente política, que é “mestra da vida”. No entanto, é indesmentível que a chegada do exército otomano às portas de Viena, no século XVIII, tem um peso importante no inconsciente colectivo da Áustria e da Hungria.

A última vez que Portugal esteve em guerra com Espanha foi entre 1640 e 1668 e, mesmo assim, ainda não há muito tempo se olhava com grande desconfiança em relação aos nossos vizinhos, com quem partilhamos inúmeras características.

Em contrapartida, a Hungria tem uma história de invasões (a última foi em 1956) e subjugação a poderes externos e é impossível que a passagem de multidões de refugiados não faça vir ao de cima todos os medos do inconsciente colectivo desta nação. Não se pode pedir a este país o mesmo que a países com uma história mais tranquila.

No caso da Áustria, como centro de império, mais dono do seu próprio destino, poderá não haver tantos receios como no caso da Hungria, mas o trauma de assistir a Viena ameaçada está presente no inconsciente colectivo deste povo e estará a ser reacendido pelo afluxo de refugiados de culturas muito distintas.

Desta vez, a extrema-direita não ganhou as eleições, mas obteve quase 47% dos votos, pelo que poderá chegar ao poder numa próxima eleição.

A obsessão pela uniformização na UE, em vez da promoção de liberdade, geradora de soluções mais criativas, está a levantar cada vez mais problemas. Não se pode obrigar Estados com histórias completamente diferentes a terem hoje as mesmas políticas, porque o passado carrega um peso significativo.


[Publicado no jornal online ECO]

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