sexta-feira, 24 de junho de 2016

A falência da C.M. Lisboa

Quando a câmara de Lisboa falir, no próximo ano, os bancos e fornecedores deverão sofrer perdas, os munícipes deverão assistir a um corte na prestação de serviços e os trabalhadores autárquicos deverão ver as carreiras congeladas

A Câmara Municipal de Lisboa anda a fazer um conjunto completamente faraónico de obras, cuja estratégia global nunca foi discutida publicamente e muito menos submetida a votos. Dadas as alterações estruturais que introduzem na cidade, são obras sem a menor legitimidade política.

Não se pode tomar medidas sobre uma cidade com a complexidade de Lisboa sem que os munícipes sejam ouvidos, sem que especialistas possam produzir as suas análises. Tomar decisões importantes nas costas dos eleitores, mesmo que com o apoio maioritário de dirigentes de vários partidos, é mais uma derrota da democracia, em que a partidocracia deste regime podre se vai progressivamente desacreditando, descendo cada vez mais baixo, mesmo quando tal se imaginava impossível.

A razão para não ter havido debate público sobre o plano geral de obras deve-se à imensa hipocrisia que as rodeia. Sob o pretexto de tornar a cidade mais habitável, dificulta-se o tráfego automóvel nas principais vias da cidade. Como se fizesse algum sentido passear nas vias mais poluídas e engarrafadas. Se querem intervir, deveriam escolher as vias secundárias e os espaços verdes e nunca as vias principais.

Mas insisto neste ponto: o mais grave não é a minha discordância pessoal com as opções seguidas, mas o facto de os lisboetas nunca terem tido oportunidade de discutir um tema desta importância, com tempo e vagar, dispondo de estudos de qualidade para enquadrar a análise.

Também já percebemos que estes estudos não existem, como ficou claro no caso das mudanças na 2ª circular, em que nem sequer as autoridades aeroportuárias foram consultadas, o que revela um amadorismo assustador.

Agora o que temos é um conjunto absurdamente elevado de obras, o que reforça a minha convicção de há muitos anos: é um urgente cortar nas transferências para as autarquias, em vez de andar a cortar na saúde e na educação. Se num período de crise a autarquia lisboeta tem dinheiro para fazer a quantidade absurda de obras que anda a fazer, então isso deve ser encarado como sinal exterior de riqueza e motivar uma redução nas transferências do Estado central para este e outros municípios.

Na verdade, o que suspeito é que estas despesas são tão excessivas, que ultrapassam qualquer excesso de dinheiro que a autarquia recebe e que a câmara de Lisboa deverá declarar a sua falência, quando todas estas despesas forem contabilizadas.

Quando esta falência ocorrer, o Estado central não deve socorrer a autarquia, que deve ser usada como exemplo para todas as outras, para não andarem a acumular dívidas que outros pagarão.

Os bancos que forneceram crédito à câmara de Lisboa devem sofrer na pele e aprender que têm que ser muito mais criteriosos quando emprestam às autarquias. Os fornecedores também devem sofrer perdas, para também eles terem mais cuidado com os atrasos nos pagamentos dos municípios. Os habitantes e todos os que trabalham na capital deverão passar a beneficiar de menos serviços camarários e os trabalhadores autárquicos deverão ver as suas carreiras congeladas, durante o período que durar o ajustamento orçamental.

A falência ainda não é o resultado inevitável, se os bancos, fornecedores, munícipes e funcionários autárquicos perceberem que é do seu máximo interesse que a câmara esclareça publicamente a sua situação financeira e o montante total de compromissos que está a assumir, directamente e indirectamente, com estas obras politicamente ilegítimas.


[Publicado no jornal “i”]

sábado, 18 de junho de 2016

O buraco da CGD

A Comissão de Inquérito à CGD deverá constituir o maior lavar de roupa suja do regime, que fará Ricardo Salgado parecer um menino de coro.

A existência de freios e contrapesos (“checks and balances”) entre os diferentes poderes, explicitada por James Madison (1751-1836), um dos pais fundadores dos EUA, é um elemento essencial para conter as tentações de abuso de poder.

Infelizmente, em Portugal, este aspecto fundamental da democracia está pouco desenvolvido, bastando dar alguns exemplos. Em primeiro lugar, o tema de perguntas quinzenais ao governo é definido por este e não pelo parlamento, ainda por cima com um prazo curtíssimo para a oposição se preparar. Em segundo lugar, a maioria tem o poder de vetar a audição parlamentar de individualidades revelantes, incluindo dirigentes da administração pública, o que constitui uma limitação inaceitável à fiscalização do executivo pelo parlamento. Em terceiro lugar, a maioria também pode limitar a constituição de comissões de inquérito, quer a si própria, quer sobre outros temas relevantes.

É completamente inaceitável e incompreensível que o regimento da AR permita estas situações de desprezo por uma das funções mais importantes do parlamento: a fiscalização do poder executivo e, atrever-me-ia também a dizer, do poder judicial. Não falo da fiscalização de casos judiciais concretos, mas da escandalosa ineficiência da justiça. Na verdade, o poder judicial nunca se justificou ao país, nunca fez reivindicações racionais de melhoria de bloqueios, desde o legislativo ao administrativo. O que o poder judicial tem sido capaz de fazer não passa de pedir mais meios para continuar a gerir tudo da mesma forma, para além das mais escandalosas reivindicações corporativas.

O que é mais estranho nesta deficiência dos freios e contrapesos é a ausência de críticas à sua debilidade. Que aqueles que eram os partidos do arco da governação nunca o tenham feito, pode-se compreender porque temeriam que viessem a ser alvo de fiscalização quando voltassem ao poder. Agora que o PCP e o BE nunca tenham feito uma crítica forte e persistente deste entorse da nossa democracia, já é mais difícil de compreender.

Infelizmente, agora parecem ser eles o obstáculo a uma reforma estrutural e essencial da nossa democracia. Tudo isto vem a propósito das declarações do BE contra uma eventual comissão de inquérito à CGD bem como das declarações do líder parlamentar do PS, Carlos César, que considera "grave" e "irresponsável" o inquérito proposto pelo PSD. Parece que o que se passou na Caixa não foi nada de grave nem irresponsável, mas tentar conhecer o que se passou é que é mau.

Na verdade, o inquérito promete. Em primeiro lugar, repare-se na inédita revelação pública de uma lista de grandes devedores da CGD, em flagrante violação do sigilo bancário. Por falar nisso, de novo neste caso tivemos mais um silêncio ensurdecedor do Banco de Portugal.

Depois, tivemos indicação – abram-se garrafas de champanhe! – de que a PGR acordou do seu torpor e tenciona investigar alguns créditos malparados na Caixa. Ninguém percebe porque é que quando as coisas estavam a ser feitas à descarada, na praça pública, a PGR nunca mexeu um dedo e só agora, quando o contribuinte já perdeu milhares de milhões de euros, é que se lembrar de agir, quando já não hipótese de recuperar esse dinheiro. Mesmo assim, mais vale tarde do que nunca.

Para além disso, todos sabemos de histórias cabeludas, envolvendo certas personagens e empresas, que deixo ao leitor a tarefa de adivinhar.


[Publicado no jornal “i”]

sábado, 11 de junho de 2016

Brexit como sintoma

Há já várias décadas que a UE mergulhou num grave equívoco, tendo-se esquecido dos verdadeiros objectivos da construção europeia: a paz e a contenção da Alemanha.

A (actual) UE foi construída com dois objectivos essenciais: garantir a paz na Europa e conter a Alemanha (então RFA). Para se conseguir alcançar estes objectivos usou-se o instrumento da integração, aprofundando a unificação de políticas e alargando o seu espaço geográfico. No entanto, a meio do caminho, perdeu-se de vista os objectivos primordiais e essenciais e passou-se a encarar o instrumento “integração” como um objectivo em si mesmo, tendo-se, com isso, acumulado um número inacreditável de erros, cada vez mais profundos e graves.

Um primeiro erro – gravíssimo –, decorrente desta confusão, foi pensar que se deveria caminhar para a máxima uniformização possível, que todos deveriam partilhar as mesmas regras. Isto foi criando um número sucessivo de anti-corpos, tendo-se gerado vários braços-de-ferro com diversos Estados Membros, tendo sido admitidas, com má cara, cláusulas de excepção em alguns casos, sobretudo o do Reino Unido. Como é que pode pensar pela cabeça dos eurocratas que obrigar os países a políticas que eles não querem pode ser bom para promover a paz?

Um segundo erro, entretanto timidamente reconhecido, foi a criação de uma burocracia europeia, à imagem e semelhança do pior centralismo e dirigismo francês, a querer meter o bedelho nos assuntos mais ridiculamente triviais. Se o objectivo era criar animosidade contra a UE, a integração europeia e as instituições comunitárias, não poderiam ter escolhido uma via melhor.

O caso mais sério de um erro de integração correspondeu à criação do euro, a que todos os países seriam obrigados a pertencer, tendo, de novo, o Reino Unido conseguido uma cláusula de excepção. Vou, neste texto, passar por cima de todos os problemas económicos do euro e fazer uma avaliação unicamente política da sua criação. O euro trouxe mais paz à Europa? Nem por sombras, criou linhas de conflito duríssimo, desenterrou os piores fantasmas da II Guerra Mundial. O euro serviu para conter a Alemanha? Fez exactamente o contrário!

A criação do euro foi o maior equívoco europeu das últimas décadas, decorrente da confusão de se ter passado a considerar que a integração era um objectivo em si mesmo. Estou em crer, inclusive, que os historiadores no futuro dirão que foi o euro que provocou a desintegração da UE.

Por tudo isto, considero que o Brexit, inevitável nas próximas semanas ou um pouco mais tarde, é um sintoma dos males da UE e que deveria ser usado para reformar as instituições e tratados europeus. Em particular, que se deveria deixar de lado a ideia de uniformização de políticas e de pretender avançar mais na integração. Já ultrapassámos o limite da boa integração. A partir daqui, mais integração vai significar quase sempre mais conflitos e menos paz, o contrário dos verdadeiros objectivos da construção europeia.

Ao negociar os novos termos de convivência com o Reino Unido, depois da saída, julgo que se deve aceitar suspender a liberdade de circulação de pessoas (um dos pontos de maior divergência), se for esse o desejo do governo britânico. Mais: acho que a UE deve continuar a permitir a liberdade de circulação dos britânicos no espaço europeu, mesmo que não haja reciprocidade, e que isso deveria ser alargado a outros países da UE. É evidente que prefiro que haja liberdade de circulação de pessoas do que não haja, mas considero que, mais importante do que isso, é que os países (sobretudo as democracias maduras) não sejam obrigados a políticas com que não concordam.


[Publicado no jornal “i”]

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Perspectivas fracas

Estamos com um conjunto de incertezas (Brexit, eleições espanholas, crise dos refugados, orçamento de 2017) que, se correrem bem, não será grande coisa mas, se correrem mal, será péssimo

Os dados do PIB do 1º trimestre confirmaram a desaceleração, com destaque para a queda homóloga do investimento. Ou seja, tivemos o agravamento daqueles que já eram alguns dos principais problemas económicos, a falta de crescimento e de investimento, a que se tem que somar a falta de emprego, que também não está a evoluir favoravelmente.

Perante estes dados, o ministro das Finanças teve o desplante de dizer que era necessário dar tempo às reformas estruturais para funcionarem. Afinal, as reformas tão criticadas e que este governo está a desfazer eram úteis. Querem maior contradição? Mais ilógico ainda é usar este argumento para justificar uma desaceleração. Se fosse para explicar uma aceleração demasiado lenta, percebia-se, mas para racionalizar uma perda de força muito mais vincada do que no resto da Europa, não tem ponta por onde se lhe pegue.

Mesmo assim, o valor do PIB está empolado pela acumulação de existências, de caracter claramente involuntário. Tudo indica que as empresas produziram mais do que o que conseguiram vender, pelo que no segundo trimestre terão reduzido a sua produção para escoar aquilo que entretanto se acumulou em armazém.

O indicador coincidente calculado pelo Banco de Portugal, que pretende ser uma estimativa mensal do PIB, referente ao mês de Abril revela isso mesmo, indiciando que o segundo trimestre será ainda pior do que o primeiro.

Mas o pior é que temos várias incertezas pela frente que, se forem resolvidas no sentido favorável, não trarão nada de especial, mas se se concretizarem no sentido desfavorável, serão muito más.

Se o Reino Unido votar para ficar na UE, a vitória será por uma unha negra e o tema Brexit permanecerá na agenda, gerando fortes incertezas durante anos. Se os britânicos votarem pela saída, teremos também incerteza sobre quanto tempo durarão as negociações e como será a relação futura com o resto da Europa.

Se as eleições espanholas produzirem um governo, isso será uma banalidade, porque é exactamente para isso que elas servem mas, se não o produzirem, agravarão a incerteza, porque ficará mais difícil imaginar como o problema se resolverá.

Se a questão dos refugiados não produzir muitos problemas este Verão, isso será bom, mas apenas pela ausência de problemas e não constituirá nenhum estímulo económico à UE. Se daí resultarem conflitos entre os Estados europeus, isso será muito mau para a solidariedade europeia, sobretudo se o Reino Unido também quiser sair deste espaço.

Em Portugal, se a coligação de esquerda conseguir aprovar o orçamento de 2017, isso será outra banalidade, porque é suposto um governo maioritário conseguir aprovar o seu próprio orçamento. Deve-se acrescentar que o mau desempenho da economia em 2016 vai obrigar rapidamente a accionar o plano B para este ano e agravar a austeridade para o próximo ano.

Se o PS não conseguir construir algo que consiga o acordo quer dos parceiros de coligação, quer da Comissão Europeia e agências de rating, é muito provável que o executivo sucumba e seja necessário convocar eleições legislativas antecipadas.

Isso implicará um período longuíssimo de incerteza (quando é que os partidos chegam a acordo para mudar os nossos absurdos prazos eleitorais?) até se conhecerem os novos resultados eleitorais e mesmo depois disto, já que as sondagens não indicam nenhuma coligação plausível e maioritária, correndo Portugal o perigo de imitar o impasse espanhol.


[Publicado no jornal “i”]