domingo, 28 de fevereiro de 2016

Más escolhas

O governo desistiu do que não devia e insiste no que não faz sentido

A proposta de orçamento para 2016 foi finalmente aprovada, desta vez com os votos favoráveis do BE e do PCP, o que se saúda, porque seria estranhíssimo que continuasse dependente da boa vontade do PSD.

Falta ainda a aprovação na especialidade, que poderá conduzir a alterações de pormenor, mas é improvável que consiga corrigir alguns dos erros mais graves deste documento.

O primeiríssimo, mais grave e incompreensível erro, é a estratégia económica subjacente ao orçamento, a “promoção” do crescimento económico pela via da procura interna, seguida pelos executivos socialistas entre 1996 e 2011, com resultados catastróficos, de estagnação económica e endividamento galopante. Será possível que ainda não tenham percebido o que nos conduziu aos braços da troika e que queiram repetir o desastre?

Passemos então a analisar algumas das principais medidas, quer em termos da sua ideologia, quer em termos técnicos.

O primeiro grupo de que gostaria de falar é o das medidas que são ideologicamente coerentes e tecnicamente correctas. Infelizmente, só consegui identificar aqui a proposta de criar um escalão negativo no IRS que, ainda por cima, o governo deixou cair, não se percebe porquê. Este escalão aplicar-se-ia aos menores rendimentos, que passariam a receber um subsídio.

Em vez de aumentar o salário mínimo, que agrava os custos das empresas e diminui a nossa competitividade, ainda muito frágil, esta alteração no IRS permitiria aumentar o rendimento das famílias, sem aquelas desvantagens. Aliás, o aumento do salário mínimo, sendo tecnicamente errado é, pelo menos, ideologicamente coerente.

O mesmo não se passa com um conjunto de outras medidas que, não só são tecnicamente erradas como ideologicamente incoerentes num executivo de esquerda.

O mais difícil de perceber é a pressa em reverter os cortes nas pensões e salários mais altos, financiados por impostos para por todos. Porque é que os funcionários públicos que ganham mais de 4000€ por mês não podiam esperar mais um ano até à reposição total dos rendimentos? Porque é que são os mais pobres que têm que pagar esta pressa?

A descida no IVA da restauração também causa a maior das perplexidades, como já aqui referi, porque não beneficia os consumidores, nem os trabalhadores, mas apenas ajuda os empresários. O governo diz-se muito empenhado na inovação e no conhecimento, mas o que é que os restaurantes têm a ver com inovação e  conhecimento? Porquê o foco neste sector e não auxiliar todas as empresas?

A esquerda também costuma exibir um amor exagerado pelo investimento público, mesmo quando este é absurdo, como as auto-estradas quase sem tráfego e estádios de futebol. Assim sendo, porque é que o primeiro orçamento de toda a esquerda reduz aquele tipo de investimento? Aqui, de novo, estamos perante não só uma incoerência ideológica, mas também perante um erro técnico, porque Portugal está com um nível preocupantemente baixo de investimento e não faz sentido que seja o Estado a dar um mau exemplo.

Apesar de tudo isto, o verdadeiro teste deste orçamento será a sua execução. Os valores de Janeiro foram favoráveis, beneficiando, de forma algo perversa, da proposta orçamental ainda não aprovada. As receitas de imposto sobre o tabaco foram excepcionalmente elevadas, porque houve um volume elevado de compras por antecipação do aumento fiscal. Ou seja, quando for colocado tabaco à venda com os novos preços é de esperar uma queda significativa das vendas e da receita fiscal.

Ou muito me engano, ou o governo vai ter rapidamente que accionar o plano B.


[Publicado no jornal “i”]

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Companheiros ocultos do amor

Muitas crianças “aprendem” que amor sem violência não é verdadeiro amor

Na infância, muitas vezes o amor dos pais não é apenas amor, antes vem indissociavelmente associado a outras propriedades negativas, tais como a agressão, o abandono ou a invasão. Estas outras propriedades ficam tão coladas à experiência de “amor”, que podem ser encaradas como companheiros ocultos do amor, na expressão feliz da terapeuta Fátima Marques (comoverse.blogspot.pt).

Na idade adulta, estas pessoas procuram um amor que também tenha aqueles companheiros ocultos, porque caso não os tenha lhes parece incompleto. Uma famosa e talentosa actriz americana dizia que era capaz de entrar numa festa com duzentas pessoas e, infalivelmente, aproximar-se de um homem desconhecido, do qual acabaria por ser vítima de violência doméstica.

Para além disso, quem na infância foi vítima dos abusos referidos acima, quer emocionais quer físicos, habitualmente desenvolve também sentimentos de culpa e de “desamparo aprendido”.

Mas culpa de quê? Como muitas vezes a agressão ocorria sem qualquer razão, apenas porque os pais descarregavam as suas frustrações na criatura mais fraca à disposição, isso gerou nestas crianças um sentimento de culpa omnipresente, que não precisava sequer de pretexto para se manifestar.

O “desamparo aprendido” consiste no sentimento de incapacidade de controlar as situações, que se prolonga no tempo, muito para lá do momento em que fazia sentido. Uma criança sente-se incapaz de controlar a extrema violência dos pais mas, se essa marca for suficientemente incapacitante, poderá carregar esse mesmo sentimento para a vida adulta, mesmo perante situações em que, do ponto de vista estritamente objectivo, isso não se verificaria.

Está aqui desenhado um quadro que ajuda a comprrender porque é extremamente comum que as vítimas de violência doméstica o sejam durante muitíssimos anos. Em primeiro lugar, a procura – inconsciente, sublinhe-se – de parceiros abusivos. Em segundo lugar, o sentimento omnipresente de culpa, que as leva a aceitar muita da violência como expiação daquela culpa. Finalmente, o “desamparo aprendido”, que as leva a sentirem-se impotentes para saírem do buraco em que estão pelos seus próprios meios.

Para além disso, poderá haver ainda outras razões a dificultar a libertação do ciclo de violência doméstica, tais como o não querer afastar os filhos dos pais (mesmo quando os filhos também são vítimas de violência); a pressão social contra o divórcio (em declínio, mas ainda presente em algumas regiões); a vergonha de assumir publicamente a violência (até pelo desejo de poupar o cônjuge a isso); a carência de meios económicos para uma sobrevivência independente.

Para que fique claríssimo, não estou – de maneira alguma! – a fazer qualquer tipo de acusação sobre as vítimas de violência doméstica, muito contrário, estou a salientar a extrema fragilidade em que a maior parte delas se encontra, justificando os maiores cuidados.

Vem isto a propósito do julgamento de Manuel Maria Carrilho, acusado de violência doméstica pela mulher Bárbara Guimarães, em que a juíza (ainda por cima uma mulher!) desconsiderou a vítima e pretendeu fazer análises sobre o casamento deles, com base em fotografias da boda, para além de muitos outros aspectos que não tenho espaço para comentar. Como se as fotografias de um casamento não fossem o império da “máscara”… Para além de o conhecimento científico afirmar que só ao fim de, pelo menos, dois anos os cônjuges se revelam mutuamente.

O comportamento desta juíza revela dois factos preocupantes: uma profunda ignorância e incompreensão da temática que está a julgar; pior, uma total inconsciência dessa mesma ignorância. Como é possível um julgamento minimamente justo e sensato nestas condições? É esta a justiça que temos? São estes juízes que se julgam no direito a mil regalias?


[Publicado no jornal “i”]

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Teimosia em vez de ideologia

Este orçamento parece mais uma teimosia contra o passado do que ideologicamente inspirado

É sabido que nos últimos anos tem havido um esbatimento nas diferenças ideológicas dos partidos no centro do espectro político e Portugal não tem escapado a essa evolução, tendo o PS e o PSD convergido para uma atitude semelhante, partilhando eles, com aliás a generalidade dos outros partidos políticos portugueses um apreço, que reputo de excessivo, pela intervenção do Estado.

No entanto, o facto de o PS estar no governo com o apoio parlamentar do BE e do PCP, partidos claramente radicais, deveria ajudar a que se gerasse uma distinção ideológica muito mais clara com a governação anterior. Infelizmente, não é isso que se passa. É verdade que as novas políticas são diferentes das que as precederam, mas o que as separa não é uma genuína diferenciação ideológica, mas antes diferenças que se explicam mais facilmente pelo adolescente “espírito de contradição” e por um exacerbada atitude de defesa dos interesses e privilégios corporativos e clientelares do grupo minoritário do sector público contra a esmagadora maioria dos trabalhadores mais pobres, que se encontra no sector privado.

Para além da incoerência ideológica das escolhas do novo governo, há também um voluntarismo orçamental, que parece basear-se num pensamento mágico, incapaz de convencer a Comissão Europeia (CE), as agências de rating e os mercados financeiros, onde as taxas de juro da dívida portuguesa estão a subir muito mais do que as dos restantes Estados “periféricos”.

Como já aqui assinalei, a estratégia económica do executivo, uma repetição do desastre ocorrido entre 1996 e 2011, que nos conduziu à troika, só pode trazer o que já trouxe no passado: endividamento insustentável e estagnação económica.

Quando foi confrontado, pela CE, com a necessidade de rever os pressupostos orçamentais, o governo persistiu numa incompreensível teimosia de manter o ritmo de reversão de cortes nos rendimentos e pensões anteriormente anunciado. Para manter intacta esta promessa, que beneficiava os portugueses de maiores rendimentos, em particular no sector público, lançou um conjunto de impostos sobre combustíveis, tabaco e outros, que afectam a generalidade da população, em particular os mais pobres. Esta opção, que não foi – de maneira nenhuma – imposta por Bruxelas, é ideologicamente incoerente com o que seria um programa de esquerda, focado nos mais desfavorecidos. Para além disso, é também incoerente com o objectivo (infeliz) do governo de estimular o consumo privado, porque redistribuir rendimento dos mais pobres para os mais ricos irá diminuir o consumo, porque estes têm menor propensão a consumir. Um trabalhador que ganha o salário mínimo praticamente não tem margem nenhuma para poupar, o que já não se passa com aqueles que ganham salários elevados.
Aliás, a opção de aumentar a despesa e compensar isso com mais impostos é muito má, porque o nosso nível de ambos já é excessivo. Para além de que impostos mais elevados sobre combustíveis e tabaco vão desviar ainda mais compras para Espanha, impedindo o cumprimento das metas orçamentais.

A descida do IVA da restauração, afinal restringido às comidas, porque o PS nunca tinha feito as contas de quanto custava, é outro exemplo de teimosia incompreensível. O sector já disse que não baixaria os preços, mas que talvez aumente o emprego. Mas se não diminui os preços, a procura não subirá e não fará sentido aumentar o emprego. Ou seja, serão os lucros dos empresários do sector a subir. Temos aqui uma medida que não beneficia os consumidores, nem os trabalhadores, apenas ajuda os empresários e tanto mais quanto mais ricos eles já forem. Qual é a lógica de ser um governo de esquerda a tomar uma medida destas?


[Publicado no jornal “i”]

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Chumbo?

Se a Comissão Europeia chumbar o orçamento português, isso pode ditar o princípio do fim deste governo

Este novo governo tem sido profundamente decepcionante, mesmo para mim, que tinha expectativas baixíssimas. É perfeitamente razoável que a esquerda tivesse fortes críticas a tecer sobre o executivo de Passos Coelho, que não gostasse das soluções encontradas. No entanto, já não é minimamente aceitável que a única coisa que tenham a propor seja o regresso ao passado e não tenha nenhuma novidade para apresentar.

É particularmente decepcionante que o Bloco de Esquerda, supostamente tão jovem e qualificado, não seja capaz de enriquecer a nova governação com propostas minimamente criativas, no bom sentido. Sim, porque criatividade no mau sentido, como sinónimo de falta de honestidade, não tem faltado.

Falta acrescentar que este regresso ao passado tem acontecido não só na economia, como também noutras áreas, como a educação e os transportes. Para além disso, para os mais esquecidos, convém lembrar que as políticas seguidas até 2011 praticamente nos conduziram para a bancarrota, pelo que conviria não regressarmos a esse inferno.

Em vez disso, o novo executivo socialista pretende incorrer no gravíssimo erro de repetir a estratégica orçamental que vigorou entre 1996 e 2011, que tão maus resultados produziu: endividamento galopante e estagnação económica.

No entanto, desta vez, por milagre, a repetição dos erros do passado já não produziria a estagnação económica, mas antes uma maravilhosa multiplicação dos pães. Como é evidente, tais resultados, anunciados no Excel de Mário Centeno, só poderiam ser fruto de manipulação sortida e fraudes várias.

Não surpreende, por isso, que essas desonestidades tenham sido sucessivamente denunciadas por todos aqueles que se debruçaram sobre o Esboço de Orçamento de Estado para 2016. As últimas análises, do FMI e Comissão Europeia, contestam duramente os números governamentais, prevendo um menor crescimento económico e défices públicos muito superiores, acima dos 3% do PIB, em clara violação dos preceitos do Tratado Orçamental e que fariam que Portugal se mantivesse no quadro do Procedimento dos Défices Excessivos.

É possível que já hoje a Comissão Europeia chumbe o esboço orçamental português, o que seria a primeira vez que tal aconteceria dentro da zona do euro. Haveria certamente a possibilidade de o nosso governo fazer nova tentativa para passar na segunda chamada.

No entanto, não é nada claro que António Costa consiga apoio parlamentar à esquerda para construir o orçamento que a Europa exige. O passo seguinte seria a negociação com o PSD. A questão posterior é saber quais as contrapartidas que os sociais-democratas iriam exigir. Não é preciso uma imaginação delirante para antever que Passos Coelho exigiria que o governo sustivesse algumas das reversões de políticas em curso, nomeadamente, por algumas não passarem de vingança e tentativa de manchar a imagem do anterior executivo. Para além disso, algumas delas, tais como a reversão de privatizações, anunciam-se caríssimas, sendo estranhíssimo que, havendo tanta falta de dinheiro, tenham sido encaradas como prioritárias.

No entanto, se chegarmos aí, estaríamos perante o surreal. Afinal, já não haveria uma maioria de esquerda, até porque as eventuais concessões de Costa a inviabilizariam, mas seria o segundo partido mais votado no governo a negociar apoio do mais votado. Um absurdo: se, na prática passarmos a um governo de bloco central este deveria ser liderado pelo partido mais votado.

Uma questão bicuda com que Marcelo terá que lidar já a partir de 9 de Março.


[Publicado no jornal “i”]