quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Anti-praxe

As praxes que se iniciam por estes dias são um terrível retrocesso civilizacional, ao tempo do “quero, posso e mando”

De acordo com o antropólogo Geert Hofstede (Cultures and organizations: software of the mind, 1991), Portugal, tal como a generalidade dos países latinos, apresenta uma elevada distância ao poder. Esta distância é definida duma forma muito interessante, não como a que os chefes impõem, mas aquela que os subordinados aceitam.

Apesar destes valores serem muito distintos entre países (muito mais baixa distância ao poder no países anglo-saxónicos), seria de esperar que os tempos que vivemos fossem propícios a diminuir a distância ao poder na generalidade dos países.

O que se passa hoje com as praxes choca-me profundamente porque entrei na faculdade em 1980, poucos anos depois do 25 de Abril, e as praxes eram mínimas e, quando as havia, eram divertidas e não humilhantes. Já falei com algumas pessoas da minha idade que me confirmaram a ideia de que nós jamais aceitaríamos o que se faz hoje aos caloiros. Como se naqueles anos a ideia de liberdade e de não subjugação à prepotência fosse claríssima.

O que se vê os caloiros hoje aceitarem, é como se recuássemos décadas, para o tempo em que era inevitável aceitar abusos dos chefes. Para quem gosta de teorias da conspiração, pode-se dizer que a actual versão das praxes existe para preparar os estudantes universitários para o trabalho escravo em call-centers, depois de acabarem o curso. Ou, de qualquer forma, para serem os trabalhadores mais formatados, obedientes e não reivindicativos.

O mais escandaloso disto tudo é passar-se nas universidades, que deveriam ser locais de saber, cultura e elevação moral e não escolas de produção de autómatos.

Em vez do desastre actual, parece-me essencial que os directores de faculdades e reitores assumam um veemente discurso anti-praxe, incluindo ameaças de vária natureza sobre os autores de excessos.

Para além disso, para praticar a solidariedade, a cada caloiro deveria ser atribuído um padrinho, num processo gerido pelos alunos mais velhos. Desejo enfatizar que tudo disto deve ser feito sem estar na lei e que não deve ser criada qualquer tipo de lei para impor isto.

Paulo Ferreira da Cunha, no seu livro Filosofia Política. Da Antiguidade ao século XXI (2010, INCM), muito significativamente escolheu como primeiro autor, não um filósofo, mas um dramaturgo grego, Sófocles (496 aC – 406 aC), e a sua peça Antígona. Neste texto, o rei Creonte proibiu, com pena de morte, que se desse sepultura a um dos irmãos de Antígona. Esta, sabendo os riscos que corria, desobedece ao decreto real, nem sequer procurando esconder a sua desobediência. Chamada à presença do rei defende-se assim: “Não me foi intimado por Zeus; nem a Dike, que coabita com os deuses subterrâneos, estabeleceu essa lei entre os homens. Tão-pouco creio que tuas ordens tenham tanta força, sendo tu um simples mortal, de modo a poderem derrogar as leis não escritas e inconcussas dos deuses”.

Podemos interpretar Creonte como simbolizando o abuso de poder e o direito formal, enquanto Antígona representa o verdadeiro sentido de justiça e o dever de uma atitude autónoma, sob os princípios mais elevados.

Estou convicto de que uma das razões que explicam a anormalmente baixa apreciação que os portugueses fazem dos nossos juízes se prende com o facto de, na maioria dos casos, entre Creonte e Antígona, os juízes escolherem Creonte.

A absurda expansão legislativa em que vivemos, a extraordinária proliferação dos mais incompreensíveis regulamentos (não se percebe porque existem nem o que significam), tem gerado um gravíssimo equívoco, o de que a lei está acima da justiça e do bem. Por ouras palavras, vivemos num tempo dominado por Creonte, onde Antígona é desprezada e vilipendiada.

Se queremos viver numa sociedade mais saudável, mais livre, mais autónoma, mais responsável, é imperioso denunciar todos os Creontes e promover e aplaudir todas as Antígonas. É fundamental abolir todas as leis e regulamentos de que os Creontes se alimentam e promover a autonomia e o sentido ético superior de todas as Antígonas.


[Publicado no jornal “i”]

2 comentários:

António Pedro Pereira disse...

Caro Doutor Pedro Braz Teixeira:
Frequento habitualmente o seu blog e leio, sempre com muito proveito e prazer, os seus textos.
Mas este atingiu um patamar que me arrisco a afirmar (talvez um pouco gratuitamente, pois é impossível compará-los todos) que está muito acima de todos os outros.
E é de uma pertinência inquestionável.
E de uma clareza só comparável à essência e importância do assunto para que nos remete.
Muito obrigado.
M.H.F.

Pedro Braz Teixeira disse...

Muito obrigado, caro Manuel Silva.