quinta-feira, 3 de abril de 2014

Por más razões

As taxas de juro da dívida portuguesa estão a cair, porque há o receio de que a zona do euro entre em deflação

Nos últimos meses, as taxas de juro da dívida pública na zona do euro têm vindo a cair de forma pronunciada. Em Itália, no pico da crise, a taxa da dívida a 10 anos ultrapassou os 7%, começando o ano de 2014 nos 4,1% e estando esta semana nos 3,3%. As taxas em Espanha seguiram uma trajectória muito semelhante à italiana, encontrando-se hoje em valores idênticos aos do daquele Estado.

Em Portugal, as taxas chegaram a ultrapassar os 14%, mas iniciaram o corrente ano nos 5,5%, estando agora em torno dos 4%.

Isto significa que a excelente evolução das taxas de juro portuguesas se deve essencialmente a um movimento externo, ainda que o previsível fim do programa da troika também esteja a ajudar.

Estamos aqui a viver a versão favorável da auto-concretização das expectativas. Com os mercados confiantes, como estão actualmente, há uma descida das taxas de juro, o que facilita a sustentabilidade da dívida portuguesa. No entanto, deve também dizer-se que, no essencial, a nossa dívida ainda não atingiu o patamar da sustentabilidade e que qualquer desconfiança futura dos mercados pode levar à versão negativa da auto-concretização das expectativas. Um evento suficientemente negativo, como mais um chumbo do Tribunal Constitucional (TC) que impossibilite, na prática, o cumprimento da meta orçamental para 2014, pode fazer disparar as taxas de juro portuguesas dificultando a sustentabilidade orçamental e agravando a desconfiança.

Confesso que tenho curiosidade em saber se o TC considera o Tratado Orçamental inconstitucional, já que é este que está a condicionar a redução actual e futura dos défices portugueses. Também gostava de saber, embora para isso já seja um pouco tarde, se o TC considera inconstitucional o memorando com a troika, que previa que dois terços da consolidação orçamental se fizesse do lado da despesa.

É que a fantasia de que os cortes em salários e pensões seriam temporários foi sempre isso mesmo: uma fantasia. Ficamos a aguardar, para percebermos se o TC ainda acredita no Pai Natal.

Mas voltando às taxas de juro da dívida pública na zona do euro, deve-se esclarecer que esta queda, que se saúda, se deve – infelizmente – a más razões.

A economia da zona do euro, após dois anos de queda, deverá conhecer um crescimento tímido em 2014, numa recuperação ainda frágil, que os últimos desenvolvimentos na Ucrânia poderão fazer descarrilar.

A inflação, que em 2013 ficou longe da meta do BCE, deveria ficar ainda mais longe, ao fixar-se nos 1,0% em 2014 (Previsões da Comissão Europeia, de Fev-14). No entanto, devido à debilidade da procura e ao fortalecimento cambial do euro, os preços estão a subir ainda menos do que o previsto.

Este desvio da inflação face à meta do BCE (abaixo mas próximo dos 2%) está a modificar o discurso desta instituição e, inclusive, do próprio Bundesbank, que começa a ponderar a utilização de medidas não convencionais para impedir que a zona do euro entre numa muito temida deflação (inflação negativa), que agravaria todos os problemas de dívidas e crescimento.

Por isso, os mercados têm antecipado um programa generalizado de compra de dívida soberana, o que tem motivado esta descida generalizada das taxas de juro.

Ou seja, as taxas de juro da dívida soberana estão a cair porque se está a instalar o receio de que estejamos próximo de um problema muito difícil: a deflação. Por isso digo que estas boas notícias surgem por más razões.

Entretanto, há fortes expectativas de que na reunião de amanhã o BCE dê indicação de estímulos adicionais, que dificilmente podem passar por descida da taxa de juro de referência, que já se encontra nos 0,25%.


[Publicado no jornal “i”]

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