quarta-feira, 19 de março de 2014

Fracasso na convergência

Ao contrário do que diz o manifesto dos 70, o problema do crescimento português não está na procura mas sim na oferta

Retomo o manifesto dos 70 num único tema, o crescimento, cuja abordagem naquele documento me parece totalmente errada. Os problemas portugueses de crescimento têm muito pouco a ver com (eventual falta de) procura e quase tudo a ver com a oferta.

Os problemas do baixo potencial de crescimento da economia portuguesa foram um dos motivadores essenciais para o enfoque da troika nas reformas estruturais. Na década que antecedeu o pedido de ajuda à troika (sublinho que o problema já durava há dez anos e que fomos nós que pedimos ajuda), a economia portuguesa teve o crescimento mais medíocre dos anteriores cem anos.

É impossível sobrevalorizar este aspecto: dez anos (leram bem: dez anos!) antes da troika chegar a Portugal, já a economia portuguesa estava gravemente doente.

É este problema que precisa de cuidados intensivos e ele tem pouquíssimo a ver com os juros da dívida pública. Esta questão está profundamente relacionada com as reformas estruturais na despesa pública (por encetar) e na intervenção do Estado em diversas instâncias e mercados (com progressos muito limitados), estranhamente ausentes do manifesto.

No memorando inicial, a troika esperava que o potencial de crescimento da economia portuguesa subisse para quase 2%, um progresso assinalável face aos menos de 1% da década precedente, mas ainda assim insuficiente para regressar à convergência com a UE, que só poderá estar garantida com taxas em torno dos 2,5%, que conseguiria uma convergência ainda débil. Convém ainda salientar que há mais de 30 anos que Portugal recebe fundos estruturais para convergir e que, por isso, é absolutamente escandaloso que tenha estado em divergência estrutural com a UE em todo o século XXI.

É essencial também recordar aquilo que pode ser considerado como o principal responsável pelo fraquíssimo crescimento económico que temos tido: as PPP, sobretudo as rodoviárias.

As PPP são um dos mais clamorosos erros de política económica, por múltiplas razões. Elas são, em primeiríssimo lugar, um erro estratégico No período em que ocorreram, Portugal enfrentava um dificílimo desafio de globalização. Ao contrário de 1960, quando aderiu à EFTA e que era o país com mais baixos salários da nova organização, nos anos noventa, Portugal enfrentava a muito exigente concorrência dos países da Europa de Leste, com salários mais baixos que Portugal, mais próximos do centro da Europa e com uma mão-de-obra muito mais qualificada do que a nossa. Como é que, algum dia, construir auto-estradas e estádios de futebol nos poderia auxiliar a competir com a Europa de Leste?

Em segundo lugar, as PPP foram um dos mais fragorosos erros de gestão conjuntural. Numa economia a rebentar com o excesso de procura gerado pela enorme descida de taxas de juro, só políticos totalmente irresponsáveis é que agravariam este excesso de procura com investimentos adicionais e perdulários em PPP.

O terceiro erro foi a forma de financiamento das PPP, uma carpintaria financeira que duplicou os custos face à dívida normal, com o único propósito de enganar os nossos parceiros comunitários, para além de outras suspeitas, que as cláusulas leoninas contra o Estado e contra os contribuintes legitimam.

Todo este excesso de procura criou um gravíssimo problema de competitividade no preciso momento em que deixávamos de dispor do instrumento cambial para o corrigir. Por seu turno, a falta de competitividade e a decorrente incapacidade de atrair investimento qualificado esmagaram o potencial de crescimento da nossa economia.

Pior era impossível e termos o pai desta monstruosidade, João Cravinho, o principal responsável por todos os anos de miséria que se seguiram, a defender publicamente este manifesto, é um insulto a todos os sofrimentos de que actualmente padecemos.

Termino com duas interrogações: como é que é possível que este manifesto escamoteie totalmente todos os custos associados a uma restruturação da dívida, apresentando-lhe apenas os benefícios? Como é possível fazer escolhas informadas só com a metade boa da informação?


[Publicado no jornal “i”]

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