quarta-feira, 5 de março de 2014

Ainda o cautelar

Os problemas na Ucrânia reforçam a necessidade de um programa cautelar

Peço desculpa por continuar a massacrar os leitores com o tema do pós-troika, mas ele é importante a vários títulos.

Infelizmente, são crescentes as indicações de que o governo português e a UE se encaminham para um caminho altamente imprudente de saída do programa da troika, sem um acordo de financiamento cautelar.

Saliente-se que esta via é imprudente, quer para Portugal, quer para a UE e a zona do euro. É muito fácil os próximo tempos apresentarem escolhos, mesmo com origem externa. Em Itália, está em curso mais uma experiência política, de um novo primeiro-ministro que pretende encetar grandes reformas, sem a legitimidade eleitoral para o fazer. Tem tudo para correr mal e mais um fracasso em Itália é perigoso para os países periféricos e para a zona do euro, porque este país é demasiado grande para poder ser ajudado.

Na Ucrânia, assiste-se a uma escalada de violência, que colocou o mundo no nível de risco mais elevado desde, pelo menos, o fim da guerra fria. O que quer que venha a ocorrer nos próximos meses, em termos militares, pode ter consequências económicas significativas, com uma quebra da confiança a fazer regressar a recessão às principais economias. Para além disso, são possíveis cortes no fornecimento de gás russo à Europa, perturbando a actividade e elevando o preço dos combustíveis. O mero aumento da aversão ao risco que um conflito desta natureza pode gerar tem todas as condições para alargar os diferenciais de taxa de juro entre os países periféricos e os mais seguros.

Estando a retoma portuguesa tão dependente das exportações, o cenário descrito tem fortes condições de nos afectar, através de vários canais. A dívida portuguesa continua insustentável e um abrandamento económico vindo do exterior agravará aquela condição.

Há quem julgue que as taxas de juro a que estiver a dívida portuguesa em Maio podem ser um referencial da escolha entre ter ou não um programa cautelar. Para esses, e todos os outros, convém recordar que em menos de dois meses, entre meados de Maio e o início de Julho de 2013, as nossas taxas de juro subiram mais de dois pontos percentuais, atingindo quase os 7,5%. Isto deveu-se inicialmente à percepção de que o programa de estímulo da Reserva Federal dos EUA tinha chegado ao fim e culminou com a crise “irrevogável” de Portas. Este episódio, tão recente, deve-nos reforçar a necessidade de um programa cautelar, porque as taxas de juro podem subir muito e muito rapidamente, quer por factores externos quer internos.

Mas a ausência de um programa cautelar é também um risco para a zona do euro e a UE. Com os riscos já enunciados, entre os quais convém salientar o caracter ainda insustentável da nossa dívida pública, é perfeitamente possível que Portugal possa ser forçado a pedir um segundo resgate alguns meses após o fim do primeiro programa de assistência financeira.

Se, ou quando, isso acontecer, Portugal estará transformado numa segunda Grécia e a zona do euro voltará a ser encarada como sendo incapaz de resolver os seus próprios problemas. Isto será mau em duas frentes: nos investidores e nos eleitorados. A percepção da insustentabilidade do próprio euro regressará, castigando de novo os países, com os investidores a fugir dos Estados mais arriscados.

Em termos políticos e eleitorais, será um festim para todos os partidos anti-euro e anti-UE, que deverão ganhar uma expressão histórica nas próximas eleições europeias, daqui a menos de três meses.

A reacção dos investidores e dos eleitores tem condições de entrar num ciclo vicioso, em que a fuga inicial dos investidores afecta alguns países, irritando os eleitorados que vêem nova factura a chegar. Isso gera a percepção, junto dos investidores, de que não há condições políticas para a sobrevivência, acentuando a fuga inicial. A correspondente subida das taxas de juro e o alargamento do número de países em dificuldades deverá irritar ainda mais os eleitorados, levando a nova fuga de investidores e assim sucessivamente.

Como é óbvio, tudo o que fragiliza o euro, fragiliza a própria UE e Portugal deveria usar estes argumentos para solicitar um programa cautelar.

[Publicado no jornal “i”]

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