quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Sem cinto de segurança

O governo prepara-se para andar sem cinto de segurança e rasgar a apólice de seguro contra terceiros

Há um condicionamento da opinião ao designar o fim do programa da troika como uma saída “limpa”, porque esta formulação sugere que todas as alternativas seriam “sujas”. No entanto, parece-me muito mais adequado designar aquela alternativa como uma saída “sem cinto de segurança”, “sem extintor contra incêndios”, “sem barcos salva-vidas”, “sem rede”, “sem seguro contra catástrofes”, etc., etc.

Como já aqui referi, há três razões porque me parece imprudente não só uma saída sem cinto de segurança, como apenas um programa cautelar. Em primeiro lugar, a excepcional dependência de Portugal face a investidores estrangeiros; em segundo lugar a condição insustentável da nossa dívida pública, que só com muita sorte poderá estar corrigida em 2016; em terceiro lugar, a manutenção de um rating de lixo, que deverá permanecer durante ainda um período alargado.

A estas razões acrescento agora uma quarta, a insuficiência de resultados do primeiro programa com a troika, quer em termos de finanças públicas, quer em termos de reformas estruturais.

Infelizmente, já se percebeu que, quer no plano interno, quer no plano externo, seria suicidário para o governo pedir um segundo resgate. Desde logo, porque ele exigiria eleições antecipadas, que não interessam agora à maioria parlamentar.

Mas os piores rumores chegam-nos da Europa. É com a maior surpresa que sou forçado a concordar com António José Seguro, que disse que se a Europa empurrar Portugal para uma saída limpa não estará a ser solidária. Mas sou também forçado a discordar do líder do PS, quando este defende uma saída “limpa”, o tal condicionamento do raciocínio.

A confirmar-se esta posição europeia, ela reforça a indisponibilidade para “fazer tudo o que for necessário” para salvar o euro, por mais juras que façam do contrário. Isto não constitui uma verdadeira novidade, porque há muito que estou convencido de que o euro não tem hipóteses de sobrevivência a médio prazo.

Porque terá existido esta pressão europeia? Parece claro que terá sido o medo de assustar o eleitorado dos países contribuintes para os programas de ajuda, sobretudo com a aproximação das eleições europeias, onde os partidos anti-imigração, anti-euro e anti-UE se preparam para conquistar um máximo histórico.
Se sairmos da forma irresponsável, como parece que sairemos, poderemos vir a ser afectados no acesso aos mercados por uma questão estritamente externa. Esta perturbação até pode não impedir a colocação de dívida pública junto de investidores, mas apenas exigir níveis elevados de taxa de juro, que agravarão as nossas contas públicas durante muitos anos.

Há ainda outro aspecto que gostaria de chamar a atenção. De acordo com o Relatório do Orçamento de Estado para 2014 (p. 40), a dívida pública deverá cair de 127,8% em 2013 para 126,7% do PIB em 2014. Isto acontece apesar de a dívida estar insustentável, recorrendo-se a uma marosca. A primeira dúvida que surge é: será que o governo imagina que os investidores são patetas e acreditam que a dívida já atingiu o nível de sustentabilidade só porque começou a descer? Não será antes que este estratagema levará os potenciais investidores a desconfiar da dívida portuguesa?

O que o ministério das Finanças tenciona fazer é levar a Segurança Social a comprar mais 1,2% do PIB em dívida nacional, o que não tem nada de mal. Não se pode querer que os investidores estrangeiros confiem na nossa dívida, mas a nossa Segurança Social não. Se acontecer alguma coisa à nossa dívida é porque as nossas contas públicas estarão péssimas e isso irá provocar muito mais danos à Segurança Social do que qualquer perda neste modesto investimento, que não representa mais do que alguns meses de prestações sociais.

Mas o grosso da redução da dívida pública acontecerá com a redução dos depósitos do Estado (em cerca de 2% do PIB). No momento em que mais precisamos de uma almofada financeira é o momento em que a vamos reduzir? Recusar um programa cautelar e, em simultâneo, diminuir a almofada de segurança é o equivalente a andar sem cinto de segurança e rasgar a apólice de seguro contra terceiros.


[Publicado no jornal “i”]

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