quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Cortes permanentes

1. A ideia de que os cortes na despesa pública seriam temporários, sempre foi uma enorme fantasia.

Em primeiro lugar, porque o crescimento económico posterior ao programa de ajustamento nunca geraria as receitas fiscais que substituíssem os cortes na despesa. Em segundo lugar, porque a redução do défice teria que continuar até atingirmos um deficit estrutural de 0,5% do PIB, imposto pelo novo tratado orçamental.

Em terceiro lugar, porque aquele tratado previa a necessidade de redução posterior da dívida pública para todos os países em que esta fosse superior a 60% do PIB. Mesmo que o ritmo imposto por este tratado seja irrealista, alguma redução na dívida terá que ser conseguida, para evitar que uma qualquer recessão futura coloque de novo a nossa dívida num crescimento explosivo.

Em quarto lugar, porque, durante as próximas décadas, o envelhecimento da população continuará a exercer uma fortíssima pressão sobre as contas públicas, quer nas pensões, quer na saúde.

Por tudo isto, a ideia de que os cortes impostos pela troika eram “temporários” foi, desde a primeira hora, uma “história da carochinha” que o governo contou e que o Tribunal Constitucional (TC) engoliu, nesta farsa colectiva em que tornou a 3ª República.

Com as novas condições impostas pela troika, tem de se acabar com esta ficção e esclarecer, preto no branco, que os cortes são definitivos. Por isso, espero que a primeira decisão do governo seja enviar estas condições para o TC. Se o executivo insistir no estratagema de empurrar os problemas com a barriga, espero bem que outras instituições contestem rapidamente a constitucionalidade desta medida. Não porque deseje que o TC discorde das medidas, mas para acabar com o delírio do ajustamento “temporário”. Ou então, que o TC as recuse e caiamos rapidamente em bancarrota, para destruir de vez a 3ª República e todas as suas instituições, a começar pelo TC.

2. Klaus Regling, presidente do Mecanismo de Estabilidade Europeu, pressionou recentemente Portugal a evitar um programa cautelar, porque seria um “programa mais duro”. Isto é absurdo, porque o essencial da ajuda do FMI em 1978 e 1983 não foi o dinheiro que nos emprestaram, que não foi muito, mas o selo de garantia que o seu envolvimento trazia.

Por isso, sem o conforto que um programa cautelar traria aos investidores, Portugal terá que realizar mais austeridade se enfrentar sozinho os mercados. Existe, de facto, na cabeça dos menos esclarecidos, a ideia que, na ausência de um programa com a troika, não teremos que aplicar tanta austeridade e poderemos voltar aos velhos hábitos da despesa insustentável. Pois podem ter a certeza que, sem a figura tutelar da troika, o menor deslize será duramente castigado pelos mercados.

A irracionalidade da argumentação de Regling é um disfarce que confirma a indisponibilidade europeia para continuar a ajudar Portugal. Já todos percebemos que os políticos europeus estão aflitíssimos com as eleições europeias de Maio próximo, com a subida nas sondagens dos partidos anti-imigração, anti-euro e anti-UE, mas escusam de nos tomar por atrasados mentais.


[Publicado no Jornal de Negócios]

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