quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Irresponsabilidade e impotência

As sociedades com elevada distância ao poder, como a portuguesa, geram irresponsabilidade e impotência

Segundo o antropólogo Geert Hofstede (Cultures and organizations, 1991) um dos traços culturais mais importantes de um país é a distância do poder, definida como “a extensão com que os dos membros menos poderosos das instituições e organizações dentro de um país esperam e aceitam que o poder seja distribuído desigualmente”. Um dos elementos chave desta definição é o “aceitam”, que revela o grau com que esta desigualdade é aceite.

A elevada distância ao poder, característica dos países latinos (e católicos), gera, para além de muitas outras consequências referidas por Hofstede, também duas outras consequências, que me permito acrescentar: irresponsabilidade e impotência.

A aceitação de uma elevada distância ao poder implica uma elevada transferência do poder pessoal para as figuras de autoridade, quaisquer que elas sejam: pais, professores (aqui há outras questões complexas, que não vou analisar), chefes no emprego, terapeutas, etc.

Julgo que todas estas questões são agravadas em Portugal pelo baixíssimo nível geral de escolaridade e pela elevada consideração social pelos títulos académicos, mais um sinal da tal distância ao poder.

Nestes países, as pessoas sentem-se com pouco poder, que aceitam que esteja muito concentrado naqueles que estão hierarquicamente acima. Há uma programação mental inconsciente, que realiza uma muito forte transferência de poder para os que estão acima.

Sentindo-se com pouco poder sobre si próprias, sentem-se ainda com menos poder sobre as questões colectivas. A baixa formação académica reforça isto, passando para “eles” a responsabilidade de pensar e encontrar soluções.

Há aqui uma componente objectiva, de baixa formação e de um débil desenvolvimento cognitivo, mas que não esgota a questão. Há inúmeras pessoas com formação superior que pensam e sentem que “eles” é que têm que pensar e construir soluções.

De tudo isto, resulta o tal par de consequências: impotência e irresponsabilidade. A formatação inconsciente, passada de geração em geração, de transferência do poder pessoal para os poderosos, gera, naturalmente, impotência. Depois de – inconscientemente, sublinho – abdicarem do seu próprio poder natural, a consequência óbvia é a impotência. O não ser capaz, também o “não ter direito a”, decorrem obviamente disso.

Este efeito, extremamente negativo, da impotência, traz consigo, no entanto, um benefício: a irresponsabilidade, sobretudo nas matérias de âmbito colectivo. Se eu não sinto, sequer, qualquer tipo de influência sobre as decisões sobre o colectivo, então eu também não sinto qualquer responsabilidade sobre as questões colectivas.

Este excesso de distância ao poder também tem tendência a gerar chefes medíocres e desonestos, pela falta de contestação ao seu poder. Parece-vos que isto tem alguma coisa a ver com a experiência portuguesa das últimas décadas?

Voltando agora para Hofstede, é interessante referir que este autor identifica uma elevada distância ao poder como produzindo uma resposta bipolar: os subordinados respondem ou preferindo dependência ou rejeitando-a inteiramente, num fenómeno de contradependência, que seria uma dependência com sinal negativo.

Estes são aqueles que contestam o poder, mas dependem do poder porque vivem da contestação. Muito dificilmente fazem propostas alternativas, porque o seu papel é ser do contra. Quando fazem propostas concretas elas caracterizam-se pelo total irrealismo, uma outra forma de irresponsabilidade. Estão a ver alguém a quem caiba esta carapuça?

Uma sociedade de impotentes é a receita ideal para a infelicidade pessoal. Uma sociedade de irresponsáveis é o condimento supremo para a asneira colectiva.

Se queremos mudar isto precisamos, em primeiro lugar, de tomar consciência da existência desta elevada distância ao poder em Portugal e dos seus nefastos efeitos. Em segundo lugar, precisamos de alterar tudo o que a promove, como a excessiva protecção legal dos chefes face a críticas de subordinados, a excessiva protecção dos corruptos face aos denunciantes, etc. 

[Publicado no jornal "i"

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